É uma ideia muito ruim – e ruim para todos os interessados.
No entanto, os tambores indicando outra guerra na Ucrânia estão soando cada vez mais altos, ganhando vida própria, numa manobra de altíssimo risco, tanto pelo governo de Joe Biden como pelo governo russo. Ou por ambos ao mesmo tempo.
“Eu realmente não sei de onde veio tudo isso” é uma frase que venho ouvindo de autoridades ocidentais seguidamente ao longo dos últimos meses.
Sim, os militares da Rússia estão em movimento e se acumulando em números talvez maiores do que nos outros anos, quando movimentações parecidas aconteceram.
Sim, uma fonte familiar com os serviços de inteligência me disse que há indicações de que o lado russo não está apenas teorizando sobre uma invasão, mas sim trabalhando para isso, caso receba ordens para invadir.
Mas algumas das suas posições estão a dezenas de quilômetros de distância da fronteira da Ucrânia. E as razões para a Rússia não querer ocupar mais do território do seu vizinho são as mesmas do passado.
Em primeiro lugar, esta não seria a invasão da Ucrânia, mas a reinvasão. A Ucrânia já foi invadida duas vezes, mesmo que o governo russo finja que os “pequenos homens verdes” que tomaram a Crimeia não eram eles, e digam que os “moradores preocupados” que desarmaram a região de Donbas eram apenas cidadãos que compraram veículos blindados de transporte pessoal em lojas de excedentes do exército.
Parte do problema da Rússia é que os movimentos são incompletos, realizados de forma rápida e sem um plano completo para o futuro. Uma ação russa renovada poderia terminar o que ficou desfeito e trazer benefícios a longo prazo a Moscou. Mas a sua incompletude também é um lembrete diário de que tais conflitos estão cheios de fatos desconhecidos que atrapalham seus planos.
Invasão real
Tanto os críticos como os admiradores da Rússia concordam quando veem todas as ações do Kremlin como intencionais e ardilosas. Mas esse nível de concordância é raro.
Depois de invadir a península da Crimeia em 2014, a Rússia ficou sem um corredor terrestre ligando-a à pátria russa. Só em 2018 os russos concluíram uma ponte fina sobre o estreito de Kerch para abastecimentos e serviços públicos.
A invasão de facto da disputada região de Donbas terminou em 2015, mas a Rússia ainda sustenta ali um movimento separatista caótico e confuso. A montanha de mercenários e foras-da-lei tem um custo, com pouco benefício: é improvável que Moscou consiga lucrar com a área, já que Donbas não é o polo industrial que foi no passado.
As alegações de que o Kremlin precisa de uma ponte terrestre para a Crimeia e de um status definitivo para Donbas são muitas vezes o centro do argumento para uma terceira invasão à Ucrânia em oito anos. Mas a maioria das opções militares teria um custo imenso.
No mínimo, a ação russa poderia envolver “normalizar” o aperto do país na região de Donbas, enviando tropas russas para bloquear o controle na área, ou mesmo para alargar ligeiramente a sua zona tampão contra o resto da Ucrânia. Há possíveis benefícios, mas, ao mesmo tempo, a ação provavelmente desencadearia sanções dispendiosas e formalizaria a cara posição do governo russo como patrocinador da região afetada.
Outros analistas sugerem que um estreito corredor terrestre ao longo do mar de Azov, passando pela cidade de Mariupol, reduziria o custo da manutenção do abastecimento de energia e água para a Crimeia. A conquista poderia ser facilmente atingida através de um desembarque anfíbio na costa do mar Azov. No entanto, uma fina faixa de terra que corre ao longo da costa seria difícil de defender e seria menos rentável como rota comercial de fornecimento se estivesse constantemente em risco de ataque das forças ucranianas.
A próxima opção comentada nos jogos de guerra da Ucrânia seria uma invasão mais ampla. Nesse cenário, a Rússia poderia chegar até o rio Dnieper, conquistando Kharkiv, Poltava e chegando até bem perto da capital Kiev.
No entanto, é aqui que as teorias ficam um pouco bobas. Ouvi um analista respeitável especular sobre a invasão de toda a Ucrânia. Todo o país. Um país, aliás, um pouco maior do que a França, de Luhansk, no leste, até Lviv, no oeste. É uma viagem que demoraria mais de 16 horas se feita por um dos tanques mais modernos da Rússia – e isso com tanque cheio, na velocidade mais alta, com ninguém no caminho e sem ter de parar para reabastecer.
Risco de sanções
A ideia de ocupar uma grande área da Ucrânia pode ter parecido possível em 2014. Mas, depois de sete anos de guerra, a Ucrânia está visivelmente aquém da nostalgia do seu antigo vizinho soviético.
Uma ocupação seria sangrenta, custaria muitas vidas russas, exigiria centenas de milhares de militares russos, e seria provavelmente uma lembrança embaraçosa ao Kremlin, com suas forças se esticando ao máximo – forças que eram decrépitas há pouco mais de uma década, antes da sua rápida modernização.
As sanções também prejudicariam, ou até destruíram, as partes da economia russa que lidam com a Europa.
Mesmo uma pequena invasão é realmente uma má ideia para Moscou.
Os defensores da probabilidade de uma invasão sempre lembram que Putin não é um agente racional, e sim alguém sujeito a movimentos radicais imprevisíveis. Eles observam que, como um autocrata envelhecido, sem quaisquer controles ou pesos e contrapesos reais para se preocupar, ele é livre para decidir qualquer coisa, a qualquer hora.
A tomada de decisão do chefe do Kremlin há muito tempo tem sido nebulosa de propósito. E, após 21 anos no comando e quase dois anos numa bolha de isolamento por causa da Covid-19, com as interações significativamente limitadas, Putin deve estar recebendo informações muito longe de serem equilibradas.
É por isso que a decisão do governo Biden de amplificar a probabilidade de uma invasão é tão arriscada.
Soar o alarme
Há sinais claros de advertência – e possivelmente dados de inteligência não revelados ainda mais fortes – para apoiar a possibilidade de um ataque. Talvez garantir que os seus aliados estejam conscientes e prontos para isso seja melhor do que ficar calado e parecer despreparado.
Mas, ao soar o alarme de forma tão alta, a Casa Branca deu a Putin uma escolha: aja agora, ou então vai parecer que você cedeu à pressão do ocidente.
Alguém imagina que o líder russo, que acredita que o seu país foi humilhado de forma retumbante no fim da União Soviética, tomaria a segunda decisão?
Forçar-lhe a fazer essa escolha pode não parecer a melhor opção para o chefe da CIA e para o antigo embaixador dos EUA em Moscou, Bill Burns, ou para os outros estudiosos da política da Rússia na Casa Branca de Biden. É preciso ter esperança de que eles saibam algo a mais.
Será que eles calcularam (ou aprenderam) que Putin não pode simplesmente se dar ao luxo de invadir a Ucrânia novamente? Ou determinaram que a invasão é inevitável?
Se houver alguma dúvida, essa operação dos EUA para aumentar a consciência do risco poderia inclinar a balança e forçar a Rússia a fazer algo que provavelmente sabe que acabará mal.
E assim, agora — dados os pedidos inviáveis da Rússia durante as conversações com os EUA em Genebra e a aparente pausa, se não o fim, dessas negociações — a Ucrânia está presa, enfrentando uma terrível espera de oito semanas, enquanto o gelo continua a ser suficientemente duro para permitir que os tanques passem pela fronteira russa. Depois disso, a lama tomará conta do caminho.
Talvez se considere que o ganho a longo prazo desses meses de especulações febris e de pânico estremeça a OTAN e a Europa contra a ameaça da Rússia e prove a Moscou que os custos de qualquer outra aventura seriam desagradáveis, ou pelo menos enfrentaria uma frente unida.
Talvez o governo Biden quisesse simplesmente mostrar à Rússia que os EUA estão de volta à Europa, invertendo o aconchego dos anos Trump com o governo russo.
Mas a Ucrânia, que já sofreu a perda de mais de 10 mil pessoas nessa guerra, ficou no centro de um jogo de grande risco de provocações nas relações entre os EUA e a Rússia. O povo está mais uma vez prestando atenção na situação, mas muitas vezes se sente incapaz, pois está encurralado pelas decisões entre Washington e Moscou.
Putin tem a atenção global e o compromisso dos EUA que talvez ele anseie. Mas, com as fichas lançadas na mesa, todas as fichas, essa enorme aposta diplomática traz o risco de uma grande guerra terrestre na Europa.
Redação: Rádio SIM FM | 19/01/2022